Era do aquário
O primeiro aspecto que queria destacar é que a internet não é apenas um novo meio que chega e, portanto, força uma nova ampliação e uma reacomodação. Ela vai além disso porque atinge a essência da concepção de comunicação vigente nos últimos séculos. Desde Gutemberg, é a maior revolução que estamos vivendo na imprensa e não sabemos aonde ela vai acabar. É a maior revolução justamente porque atinge o cerne do modelo sobre o qual se assentou a comunicação nos últimos séculos, ou seja, desde o século XVIII nos EUA e na Europa e desde o século XIX no Brasil. E em que consiste esse modelo? Consiste no seguinte: existe um grupo ativo de produtores da informação e existe uma massa passiva de consumidores. E a comunicação se dá em um sentindo só, dos produtores ativos para os consumidores passivos. Resumindo, é o seguinte: uns poucos falam, e todos, ou a maioria, ouvem, leem ou veem.
Esse modelo valeu para os jornais, para o rádio e as televisões. Valeu e vale, ou estava valendo até agora. Esse jornalismo eu chamo, de brincadeira, de jornalismo do aquário. Não a Era de Aquário do Hair¹ . É que os jornais são inteiramente controlados pelo aquário. O aquário é o comando da redação. Ele fica geralmente dentro de um aquário, uma sala envidraçada onde se tem a visão do conjunto da redação e a redação inteira vê o poder que está ali. É para ela se lembrar que tem alguém que manda, que comanda que, em última instância, é responsável por tudo. Então existe esse aquário, transparente visualmente e nem um pouco transparente no restante. E que mostra aos jornalistas quem manda na redação.
Esse aquário reina absoluto nas redações. Em momentos de maior efervescência, de maior dinamismo, não é tão absoluto assim, tem uma troca maior. Quem foi jornalista nas décadas de 1980, 1990 sabe o que é uma época de muita efervescência. Vimos um processo de redemocratização. Havia na sociedade uma demanda por um jornalismo bom, digno, correto, dependente dos fatos, ligado à inspiração democrática da sociedade e, de modo geral, os aquários foram sensíveis a isso, fizeram mudanças, conectaram, se sintonizaram com o sentimento democrático existente na sociedade, com aquele momento de abertura, de demanda, de aprofundamento de demanda democrática.
Tem outros momentos em que os aquários disseram: “Não. Vamos fazer o que se espera da gente, que é defender os interesses dos acionistas”. E, muitas vezes, deram capa de jornal para defender determinados interesses. A era do aquário significou mal jornalismo. Mas também bom jornalismo. O editor chefe, o secretário de redação, o editor responsável, aquele núcleo que responde a alguém e que, em alguns momentos, é o núcleo do próprio dono do jornal (nas épocas heróicas do jornalismo), reina absoluto na era do aquário.
Era da rede
Com a chegada da internet, da digitalização e da transmissão de dados esse modelo começa a enfrentar seríssimos problemas. Estamos saindo do jornalismo da era do aquário para o jornalismo da era da rede, que são coisas inteiramente diferentes. O jornalismo da era do aquário é um núcleo ativo com uma massa passiva. Um núcleo que produz informação, uma massa que consome informação. Na era da rede já não é assim. Estabelece, logo de entrada, uma contradição entre o jornalismo feito no sistema da era do aquário com a existência objetiva de uma rede, que convive cada vez mais com esse jornalismo.
Em um primeiro momento, as redações disseram: “Não, a gente precisa dar atenção para a galera que está chegando”. Aumentam o espaço das cartas, publicam comentários, tomam iniciativas que se destinam, de alguma forma, a responder à demanda por interatividade e participação, pelo fato de a rede entrar dentro dos jornais. Mas tentam fazer isso sem perder o controle do aquário, tudo tem que passar por ele e, evidentemente, isso não satisfaz, não responde, não resolve a demanda que existe.
Normalmente o que acontece em todos os lugares do mundo e também no Brasil é que, com o tempo, grupos de leitores formam redes e descobrem que possuem uma visão crítica em relação a isso, que tem pontos em comum, ansiedades, dúvidas, perguntas que não estão sendo respondidas e começam a estabelecer relações. Começam a se formar os blogs, passam a ter blogs mais lidos.
Os blogs funcionam como um elemento organizador, catalisador. Em torno de uma série de blogs vão se formando outros blogs, alguns deles desempenhando o papel de terrenos públicos, de formação de opinião, de debate, de encontro. E começam a fazer um trabalho de crítica dos jornais. Saiu uma notícia no jornal – televisivo, impresso, on-line, etc. – e uma hora depois, na blogosfera, todo mundo está comentando, discutindo se aquilo está correto, se não está, dando uma outra versão, acrescentando informação, muitas vezes qualificando aquela informação. Seja positivamente, agregando informações novas. Ou negativamente, dizendo “não é isso, aqui é diferente, trata-se de outra coisa”.
Para o jornalismo formado pela era do aquário e para os aquários, isso é um deus nos acuda. Porque nós nos acostumamos – eu falo “nós” porque venho dessa geração – a estar no Olimpo, a falar o que queríamos, a dizer o que bem entendíamos e a deixar de dizer o que bem entendíamos. E, de repente, aparece um monte de gente com acesso a canais que influenciam o mesmo público e diz “não, isso não está certo não”. Mesmo que eles estejam errados, entram no jogo. Quem estava fora, entra no jogo.
Compromisso com a sociedade
O modelo do aquário não se sustenta mais porque é obrigado a estar lidando diariamente com alguém que questiona, qualifica a qualidade da informação. Para nós, jornalistas, que temos um ego monumental – e eu não sou exceção – isso é uma coisa terrível, porque você desce do Olimpo e passa a ter que dar satisfações a seus leitores, telespectadores e ouvintes. Os jornalistas só foram treinados para dar satisfação a uma pessoa: o chefe, o acionista, o dono do jornal, o dono da televisão. É para isso que jornalista foi treinado. Os bons jornalistas sabem que é preciso dar satisfação à sociedade. Mas um bom número de jornalistas acha que o importante é a sua carreira, o seu chefe, o seu jornal, os seus colegas e que é preciso apenas conviver com a sociedade, ela não é tão importante assim. Não entenderam a essência da profissão, que a lealdade principal do jornalista é com a sociedade e não com o dono do jornal, o chefe, a carreira, as fontes. Sempre que tiver uma contradição, a opção tem que ser pela sociedade. Assim são os grandes jornalistas, que sabem que o jornalismo é uma missão, é informar a sociedade e que, para isso, é necessário dar satisfação a ela antes de tudo.
O sistema do aquário começa a ser questionado e o jornalista convive muito mal com essa crítica. E convive, isso é curioso. Não sei quem vive mais preocupado com o outro, se é a blogosfera, que vive preocupada com os jornais ou se são os jornais, que vivem preocupados com a blogosfera. Os caras da blogosfera acordam, vão ler os jornais e criticam, e os caras dos jornais, os grandes colunistas estão o tempo todo ali na blogosfera, pelo menos ali em oito, dez blogs porque sabem o seguinte: aquilo ali está fungando no cangote deles. E isso é ótimo, jornalista descer do pedestal, jornalista dever satisfação – mesmo que de uma forma envergada, truncada – à sociedade e não apenas aos acionistas dos jornais e seus prepostos.
Isso fará os jornalistas fazerem um trabalho melhor. E fará aumentar o peso do público no jornalismo. Por que qual é a grande contradição do jornalismo? O jornalismo é um espaço público. Quando não é, ele vai até certo ponto e para. Por exemplo, um jornal do sindicato, vai até o sindicato e para. Um jornal produzido na UnB, vai até certo ponto e para. O jornal da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) vai até certo ponto e para, ele não vai atingir um grande público. Jornalismo, para atingir um grande público, precisa ser um espaço público, onde o público vai achar informação qualificada, independente e honesta, sem grandes manipulações. Ele não chega a falar isso, mas intui: “aqui eu vou ter acesso a um debate público que me qualifica. Plural, democrático, amplo e que me qualifica”; É por isso que as pessoas compram jornal. Ninguém compra jornal para ler opinião do dono. Ou para ler opinião de uma colunista. Você compra jornal para ter acesso a uma informação relevante. Mas, para isso, é preciso que o jornalismo seja independente. Tem que ser independente do governo, mas tem que ser independente da oposição. Tem que ser independente dos sindicatos, mas tem que ser independente das empresas. Tem que ser independente dos grandes grupos econômicos, das grandes corporações. O jornalismo tem que ser independente da opinião dos acionistas. Tem que ser dependente de uma coisa: dos fatos. Jornal existe pra correr atrás de notícia e fazer matéria sobre o que aconteceu, não sobre o que eu queria que acontecesse ou o que eu imagino que possa acontecer e pode ferir esse ou aquele interesse.
Jornal independente, portanto, é o jornal que é dependente dos fatos. Jornalismo no Brasil hoje em dia é absolutamente independente dos fatos. O jornalista escreve o que quer, faz o que quer. Os jornais só se submetem, são mansos. Submetem-se a um determinado tipo de jornalismo que não é dependente dos fatos. Se fizéssemos a resenha dos jornais deste ano, onde será que eles acertaram e onde erraram? O que falaram que se confirmou e o que se falou que era mentira? E aí nós podemos ver como isso acontece.
Lemos um jornal, ouvimos o noticiário de rádio, vemos o noticiário da televisão porque necessitamos de informações e julgamos que são dadas com uma visão pública – mesmo que intermediada com interesses privados. Sabemos que tem os donos de jornais, os acionistas. E isso não tem modelo que resolva. Não é só dizer: “vamos fazer um modelo diferente, o Estado vai mandar” – vai ter o mesmo problema, não adianta. Ou: “vamos fazer alguma coisa, a sociedade civil vai mandar” – que sociedade civil? Quem é a sociedade civil? Não é simples, é uma contradição meio insolúvel.
O jornalismo é um espaço público e é mediado por interesses privados das mais diversas naturezas, O bom jornalismo é onde os interesses privados pesam pouco e a compreensão de que aquilo é um espaço público pesa muito. Nos grandes jornais do mundo, a compreensão de que aquilo é um espaço público é muito forte e os interesses dos acionistas tem um peso secundário. E onde se tem mal jornalismo, os interesses dos acionistas prevalecem sobre o espaço público.
Grilo falante da imprensa
O que esse choque da internet, a saída do jornalismo da era do aquário e a entrada na era da rede, está colocando? Está colocando em pauta esta discussão. Não em termos teóricos, mas em termos práticos, diariamente. Os jornais, revistas, televisões, rádios entregam uma informação à sociedade do mesmo modo que entregavam antes, na era do aquário. Só que agora tem o outro lado dizendo: “não é bem isso, calma, não concordo”. E essa situação incomoda os aquários. Vocês não imaginam o incômodo dos grandes colunistas que falavam sozinhos e hoje em dia falam e imediatamente tem alguém dizendo: “ah, isso aí é blablabla”. Ninguém gosta de ser criticado. É uma pena, porque a gente melhora com a crítica. Todos melhoramos com ela se temos uma atitude positiva. Mas, no geral, não gostamos de ser criticados, gostamos de ser aplaudidos, reconhecidos, de ver o salário crescer.
Costumo dizer que a blogosfera é o grilo falante da imprensa hoje em dia no Brasil. Pinóquio contou uma mentira: “Pinóquio, o seu nariz está crescendo”. Pinóquio manipulou: “Opa, está manipulando, Pinóquio”; Pinóquio fez com que os interesses ideológicos, econômicos, políticos dos acionistas prevalecessem sobre o espaço público e o cara diz: “Qual é Pinóquio, está achando que nos engana?”. Podemos chamar a era da rede de era do Pinóquio. Há um Pinóquio que diz à imprensa: “não é bem assim!”.
Você pode dizer: “ah, isso são uns blogzinhos que dizem alguma coisa” Hoje isso mudou. Vou dar alguns exemplos. Em abril, maio de 2010, o ex-deputado Roberto Jefferson escreveu um artigo na Folha de São Paulo, na página de Opinião, onde dava suas opiniões acerca do governo, evidentemente contrários, dizendo que o Brasil estava no fundo do poço. Opiniões que cabem no pensamento política de Roberto Jefferson. No dia seguinte, teve de vir a público e dizer o seguinte: “Me desculpem, eu fiz um plágio”. O artigo era um plágio de outro artigo, não havia sido escrito por Roberto Jefferson. É claro que normalmente teria sido escrito por um assessor dele, mas também não foi. Alguém leu o artigo e pensou: “já vi isso antes”. Pesquisou no Google e descobriu que o artigo era de outro sujeito e tinha sido publicado três meses antes. Reparem só: a rede, a digitalização de dados deu a todo mundo instrumentos para fazer reportagem. Até um certo ponto, porque reportagem boa não é só o com o Google, ali é um ponto de partida, embora os jornais também estejam se limitando ao Google cada vez mais. O cara apurou. Para o que era necessário, apurou de forma completa: “foi publicado um outro artigo três meses antes com o nome assinado por fulano de tal etc.” Ou seja, em 10, 15 minutos ele já tinha uma resposta a oferecer. Além disso, ele tinha um blog e postou essa informação lá. Alguns leitores também tinham outros blogs, que eram lidos por outros blogueiros, etc. Aquilo rodou e, em 24 horas, o ex-deputado Roberto Jefferson dizia: “estou com um problema” e teve que admitir que houve uma falha, tudo bem isso ocorre, a vida é assim.
Em 24, 28 horas, a blogosfera pôde apurar, identificar um problema, divulgar o problema e aquilo ser lido e determinar uma mudança de comportamento em um ator político. Vou dar um exemplo mais impactante: a bolinha de papel durante a campanha presidencial de 2010. A TV Globo deu uma matéria de sete minutos no Jornal Nacional provando, por a + b, que havia um segundo objeto projetado sobre a cabeça do candidato José Serra, que o havia atingido. No dia seguinte, às sete da manhã, acordo, vou à blogosfera, temos uma matéria, um trabalho feito por um professor de Comunicação de uma universidade do Rio Grande do Sul, que prova que a Globo tinha mentido. E como ele fez isso? Baixou e pôs no computador as imagens que a Globo tinha mostrado, dizendo que aquilo era um segundo objeto atingindo a cabeça do candidato José Serra. Decompôs aquilo quadro a quadro, frame a frame, e não há nenhuma trajetória de nenhum objeto. Aquilo era uma coisa evidente, você via. A perícia foi feita com uma imagem de celular. Mesmo que a imagem não seja boa, que tenha quatro frames por segundo, era uma coisa evidente, por que não exista possibilidade de pular entre um frame e outro. Ou seja, em algum momento, tinha de aparecer a imagem do objeto. Houve o reflexo de uma coisa na testa do candidato e a Globo se confundiu. É claro que aquilo ganhou ares de um trabalho altamente científico quando Ricardo Molina, o eterno perito de áudio e vídeo da TV Globo, hipotecou o seu saber.
Reparem só, um professor do Rio Grande do Sul ficou incomodado, baixou, foi para o computador, apurou e postou na internet. Em menos de doze horas, a matéria da Globo tinha ruído ladeira abaixo. A Globo não voltou ao assunto no Jornal Nacional do dia seguinte. Trabalhei antes na TV Globo, uma empresa fortíssima, um jornalismo competente quando quer ser competente e, do ponto de vista técnico, um jornalismo espetacular, uma emissora que tem alguns dos melhores profissionais de televisão e uns dos melhores profissionais de jornalismo no Brasil. Há dez anos, uma matéria de sete minutos do JN, com peritos em cima qualificando como positiva, como verdadeira a informação, seria definitiva como a bíblia – nunca mais se questionaria. Pois bem, menos de doze horas depois, a Globo já estava recuando. Claro que ela não disse: “errei”. Nós não vamos esperar isso: “cometi aqui uma vilania, interferi no processo eleitoral a favor de um candidato quanto a outros candidatos” – não. Mas estava recuando de fininho, à francesa, saindo do assunto. Nem Zátopek² conseguiria sair tão rápido de um caso como a Globo saiu. Não tinha como segurar.
Eu cito esses dois exemplos para mostrar o seguinte: não se faz mais jornalismo no aquário. E a blogosfera, com todos os problemas, tem uma capacidade enorme de interferência na mídia tradicional. Enquanto grilo falante, a internet hoje cumpre um papel extraordinário. Mas será que a internet vai substituir os jornais? O jornalismo de rádio, de televisão? Porque isso já é outra coisa. A blogosfera vai se transformar em outra coisa além de ser apenas o grilo falante? Vai praticar jornalismo, ou seja, correr atrás das notícias e não fazer apenas a crítica do jornalismo? Ir atrás dos fatos e não apenas qualificar a opinião e as notícias que os outros fazem? Fazer imprensa e não apenas uma meta-imprensa? É um desafio, não está dado o que ela vai fazer.
Redução de custos
Existem pontos positivos que permitem imaginar que isso pode acontecer. E aí eu entro no segundo grande impacto da digitalização e da internet sobre a comunicação: elas produzem uma brutal redução dos custos de produção das empresas de comunicação. Tivemos um processo de concentração avassalador – que nos EUA e Europa aconteceu mais ou menos nas décadas 1950, 1960. Em uma cidade que tinha sete ou oito jornais, agora se tem dois. No Brasil, isso se deu a partir da década de 1970, junto com a ditadura militar. Interessava à ditadura a concentração. Ao mesmo tempo, se empurrava naquela direção porque os custos de produção eram tamanhos, cresciam a tanta velocidade, que os grupos não conseguiam suportar.
Eu sou do Rio de Janeiro, sou carioca, me criei no Rio. Quando me criei, nas décadas de 1950-1960, o Rio de Janeiro tinha vinte jornais mais ou menos. Cada um dirigia-se a um público com uma certa inclinação política, comportamental, etc. Eu vou dar um exemplo: o Última Hora era para o trabalhismo, o Tribuna de Imprensa para os lacerdistas, o Diário de Notícias e o Diário Carioca pros udenistas não lacerdistas, O Globo para os conservadores. Cada jornal se dirigia a um público.
Os jornais vendiam muito em momentos de grande pico. Mas um jornal que vendesse, na época, quarenta mil exemplares, se sustentava perfeitamente, era lucrativo. Os jornais não tinham oito cadernos, trezentas páginas, nada disso. São jornais de dois cadernos, um caderno. Caderno de cultura, caderno B é algo do final de década de 1950, início de 1960. Os jornais tinham, mais ou menos, doze páginas, vinte e quatro estourando. Eram jornais leves e quando você começa a aumentá-los, os custos ficam altíssimos. Então se dá a concentração. Dos vinte e poucos jornais que haviam naquela época, sobreviveram dois ou três no Rio de Janeiro. São Paulo tem, hoje em dia, dois ou três jornais. Tem também os jornais populares, mas aí é uma coisa nova, que vem depois.
Isso não é um fenômeno brasileiro, em todos os lugares do mundo, assistimos a um processo de concentração avassalador. Fruto de quê? Da elevação dos custos de produção. As empresas menores, pequenas e médias, não conseguiram se segurar, quebraram. Foram absorvidas pelas outras, saíram do mercado. A internet e a digitalização promovem uma diminuição brutal dos custos de produção. Vou dar um exemplo: dois terços dos custos de um jornal impresso estão fora da redação. Têm a ver com papel, distribuição e administração. Só um terço está no coração do negócio, que é a redação. E olhe lá. Isso quer dizer que é possível sair do meio do papel e ir para o digital, fazer o mesmo jornal, com a mesma qualidade ou co m a mesma falta de qualidade, por um terço do preço. Isso propicia uma mudança nas bases econômicas do negócio.
Na verdade, estaríamos começando a viver uma época semelhante ao que chamo de os tempos heróicos do jornalismo, onde os jornais se formavam ao redor da personalidade de algum jornalista, jornalistas que fundavam o seu jornal e geralmente continuavam a frente, eram editores-chefes, redatores-chefes, diretores dos jornais, ou seja, os jornais eram mais que corporações, eram um extensão de uma atividade profissional – e, às vezes, política também.
Em determinados blogs brasileiros esse processo está em andamento. Existem blogs de jornalistas influentes, importantes, que eram da imprensa tradicional, que foram às vezes expelidos da imprensa tradicional e que migraram para a internet. Naquele blog, existe algo que não é a apenas um registro, um diário de opinião. Tem começo de reportagens, forma-se uma rede de especialistas que se contrapõem aos especialistas que são sempre os mesmos que vão ser ouvidos pelos grandes jornais.
Jornalismo nos blogs
Quando trabalhava na TV Globo havia um especialista em finanças públicas e orçamento que a redação toda brincava, dizendo que ele já tinha até ticket refeição, porque ele dava entrevista duas vezes por semana, estava sempre disponível para falar o que se esperava dele. E ninguém precisava pedir, ele já sabia o que queriam. E os outros já sabiam o que ele diria. Agora, existem, nos blogs, especialistas que dizem: “não é assim”. Durante o processo eleitoral, alguns blogs publicaram os melhores trabalhos de pesquisa de opinião que eu vi na minha vida. Analistas capazes de detectar tendências, e eu, como alguém que tinha compromisso com a Dilma, lia aquilo, tinha informação, tinha análise, percebia aquilo e dizia “por que esse cara não está em um jornal?” Mas ele já está na internet e já está chegando a todo mundo.
Na blogosfera, estamos na superfície, temos que aprofundar. E para aprofundar é necessário recursos, dinheiro, coisas que permitam bancar a sobrevivência de alguns profissionais durante um determinado tempo para que sejam capazes de fazer uma apuração que não seja algo que já está ali, ir além do que existe. Esse é o grande desafio da blogosfera.
Nos Estados Unidos, esse processo está em um curso mais avançado. Temos alguns blogs, portais, sites de altíssimo nível com efetivo profissional permanente, sessenta a oitenta pessoas, que cumprem funções que os jornais não cumprem mais – até porque são muito pesados. Contrataram jornalistas do New York Times, do Washington Post, com uma cabeça moderna, diferente, mais jornalistas recém-formados. Isso está acontecendo nos Estados Unidos e acho que é inevitável que isso aconteça no Brasil.
Esse processo de barateamento vale para a imprensa escrita, mas também para o rádio, cinema. Todo mundo sabe disso, cinema agora é mais barato. É tão barato que o cara sai para filmar, filma tudo e depois fica louco na edição. Tudo está ficando mais barato. Com o tempo, serão desenvolvidos mecanismos que possam divulgar, disseminar, e a internet está aí para isso.
Modelo de negócios
Existe um processo em curso em que a internet promove essas duas coisas demolidoras. Altera o modelo centralizador, o modelo do aquário, que não depende do consumidor, do telespectador, do leitor – não depende a curto prazo, no longo prazo todos dependem. Segundo, o barateamento dos custos de produção. Existe um terceiro aspecto que os donos de jornal, os acionistas, os executivos falam muito e ele existe, é real, que é o modelo de negócios. Ou seja, como vão conseguir fazer dinheiro. Na medida em que se começa a migrar do papel para o eletrônico, o modelo tradicional de negócios também é posto em cheque. Ele vale para rádio, jornal, televisão. São meios que dependem de uma audiência, é preciso atrair um público que vem atrás de informação e depois se oferece a determinados anunciantes o espaço para que divulgue o seu produto. A venda não cobre um terço da remuneração dos jornais impressos, mais de dois terços disso vem de anúncios.
Esse modelo está em cheque, primeiro porque, na internet, ninguém está acostumado a pagar pela informação. Será que os grupos de comunicação vão entrar em acordo e todo mundo vai passar a cobrar? Não creio. O segundo problema é quanto à publicidade. Não encontraram ainda um modelo de publicidade na internet, ou que você não nota a publicidade ou você nota tanto que se incomoda, que é a publicidade negativa. Isso é um problema grave. Qual é a solução? Tem gente que diz que os jornais vão ser sustentados por pessoas que querem e que pagarão um pouco mais por isso – é bonito, mas eu não acredito nisso. Ou dizem que vai haver mecenas. Isso é complicado, porque em todo jornal que depende de mecenas, o espaço público vai ficar reduzido. Sempre digo o seguinte: o melhor financiador de jornais são os classificados, porque são milhares de pessoas financiando, não só grandes anunciantes. Quem anuncia em classificados não tem poder nenhum sobre o jornal. Já quem, todo dia anunciar em três ou quatro páginas tem um poder extraordinário de diálogo com o departamento comercial e, por extensão, com a redação – nos jornais e nos órgãos de comunicação onde essa separação entre verbo e verba não é bem feita.
Esse não é o principal problema dos jornais, pelo menos no Brasil. O principal problema é perda de credibilidade, pois existe um grilo falante que fala o tempo todo e os jornais dão vários motivos para isso. Os jornais vivem na vitrine. Os jornalistas estavam acostumados a serem estilingues. Jornal estava acostumado a ser estilingue. Não a ser vidraça. Então, ficam incomodados com isso.
Bom jornalismo
Esse processo é muito tumultuado, confuso e complexo, riquíssimo. Vocês não imaginam a inveja que eu tenho de quem vai fazer jornalismo, vai entrar na profissão em um momento de tumulto, de transformação como esse. Pode ser que vocês nem consigam emprego, claro, pode ser que as empresas acabem. Não acho que vai ser assim. Acho que a sociedade precisa de bom jornalismo. E o bom jornalismo não é só crítica ao jornalismo do outro. É correr atrás dos fatos, fazer boas notícias.
Para encerrar, queria falar uma coisa. O bom jornalismo deve ter duas coisas. Uma eu já falei, que é a dependência dos fatos. A segunda é a busca por isenção. Eu vejo muito na blogosfera: “ah esse negócio de isenção não existe, ninguém é isento”. Isento o tempo todo ninguém é. Mas buscar a isenção é uma atitude, é um comportamento. Mesmo que não se consiga ser isento, mesmo que, de alguma forma, se contrabandeie preconceitos, pois nós somos seres humanos, a busca da isenção permite o entendimento de que o jornalismo é uma atividade pública, não é uma atividade privada.
Costumo dizer o seguinte: ninguém pode se feliz o tempo todo, nenhum de nós. E, por isso, renunciamos a busca da felicidade? Não. Continuamos querendo ser felizes, lutamos para sermos felizes. Lutamos para amar quem amamos com todos os problemas. A vida é complicada, a vida é tumultuada, a vida não existe no céu. Mas nem por isso renunciamos a busca da felicidade. Com a isenção é a mesma coisa: não conseguimos ser isentos 24 horas por dia, 365 dias por ano em todas as reportagens, em todas as matérias. Mas se não buscarmos a felicidade, seremos infelizes. Se não buscarmos a isenção, não seremos bons jornalistas. É possível buscar a isenção e é possível ser dependente dos fatos. Já se fez jornalismo assim no Brasil, pode-se voltar a fazer. Basta termos consciência de que a função do jornalista não é pegar o país pelo nariz e puxar de lá para cá, a função do jornalista não é comandar o país. A função de dono de jornal não é dizer para onde o Brasil tem de ir. Quem diz para onde o país tem de ir é o eleitor, que elege, que decide e que cobra depois. Se não foi bem, tira do governo nas próximas eleições. Essa não e a função do jornalismo. A função do jornalismo é ir aos fatos, dar a notícia, buscar isenção, fazer do jornalismo um espaço público, qualificar o debate público com pluralismo, são coisas simples, mas que o jornalismo do Brasil, na era do aquário, tem muita dificuldade de fazer.
Conferência proferida na Faculdade de Comunicação da UnB, em 06/06/2011
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