Em 2009, uma vendedora do interior do estado de São Paulo entrou num
hospital filantrópico da capital paulista para fazer um exame
gastrointestinal, mas saiu de lá sem parte do braço depois de tomar uma
injeção no pulso direito. A mulher se queixou de dores na região durante
todo o dia 27 de abril daquele ano. Na manhã seguinte, seu membro não
tinha mais circulação sanguínea. Foi constatada trombose no local e,
após vários tratamentos sem solução, não restou outra alternativa aos
médicos: eles amputaram o antebraço da paciente em 7 de maio.
Até sexta-feira (26) o Hospital Santa Marcelina, em Itaquera, na Zona
Leste, não sabia explicar a Rosely Viviani, de 48 anos, como foi
possível ela ter se internado para uma endoscopia (exame que introduz
cânula com câmera pela boca do paciente para se verificar doenças
gastrointestinais) e dez dias depois ter um membro aparentemente
saudável retirado.
Rosely só havia ido ao Santa Marcelina porque semanas antes teve
diagnosticado câncer no útero e ovário e precisava fazer a endoscopia
pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para saber se tinha mais tumores em
outros órgãos - o que não se comprovou. “Entrei no hospital com o meu
braço e saí de lá sem ele. E até hoje ninguém me disse o que ocorreu”,
disse a mulher, em entrevista ao
G1 concedida em sua
casa em Cerquilho, no interior de São Paulo. Ela é separada e mora com o
filho André Luiz, de 11 anos. “Me disseram que tiveram de amputar do
cotovelo para baixo senão eu ia morrer. Era meu braço ou minha vida.”
Em busca de respostas, uma comissão interna do próprio hospital e uma
sindicância do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo
(Cremesp) apuram o caso de Rosely para saber se houve erro médico.
Existe a suspeita de que uma enfermeira tenha aplicado o sedativo para a
realização da endoscopia na artéria em vez da veia. O remédio foi dado
por meio de uma agulha, que já havia sido introduzida no pulso da
paciente para ministrar outros medicamentos.
“Ela aplicou a injeção na artéria e não na veia. Fora isso, demoraram
para ouvir meus pedidos de que eu estava com dor e havia algo errado.
Passei mais de um dia com o braço dolorido”, lembrou Rosely.
Hospital e Cremesp também deverão verificar se ocorreu demora no
atendimento de Rosely. A vítima se queixou que logo que tomou Diazepan
no braço se queixou de dores, mas só foi socorrida 26 horas depois. “Eu
chorava de dor, mas ninguém me atendia. Aí já era tarde. Não havia mais
circulação sanguínea no braço. As pontinhas dos dedos começaram a ficar
pretas, depois começou a escurecer na altura do pulso”, afirmou a
mulher.
Caso haja comprovação de algum tipo de erro por parte do hospital, os
médicos poderão ser punidos com suspensão administrativa pelo hospital
ou até ter a licença para exercer a profissão cassada pelo Cremesp. Como
o caso envolve uma enfermeira, o Conselho Regional de Enfermagem
(Coren) em São Paulo também foi procurado pelo
G1 para comentar se apurava a denúncia. A assessoria de imprensa do conselho informou que não havia registro sobre o caso.
A outra hipótese que é apurada pelo Santa Marcelina e Conselho de
Medicina é que o próprio organismo da mulher tenha reagido de forma
inesperada a algum remédio. Se for constatada essa possibilidade, a
equipe médica hospitalar é inocentada.
Punção arterial inadvertida e Fenômeno de RaynaudQuestionados sobre as apurações, hospital e Cremesp alegam que não podem dar detalhes antes das conclusões.
Procurada para comentar o assunto, a diretoria médica do Hospital Santa
Marcelina informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que “o caso
referente à paciente Rosely Viviani está com a comissão de ética
médica". "A comissão está apurando minuciosamente o ocorrido para
verificar se houve erro médico ou não.”
O
G1 não conseguiu localizar os médicos e enfermeiros que atenderam Rosely para comentar o assunto.
Apesar disso, a equipe de reportagem obteve documentos do Santa
Marcelina que confirmam que o braço de Rosely só passou a apresentar
problemas após a injeção que tomou. “(...) a paciente, após punção
[aplicação da injeção], evoluiu com obstrução arterial aguda de MSD
[membro superior direito]. Foi submetida à trombolectomia e
heparinização plena, sem sucesso. Ontem foi submetida à amputação de
antebraço direito”, escreveu uma ginecologista do hospital no parecer
médico de 2009.
Outro relatório do Santa Marcelina daquele mesmo ano sugere duas causas
possíveis para explicar essa “obstrução arterial” que originou a
amputação do membro: a injeção ou um fato surpreendente. “Sugeriu a
solicitação de parecer para cirurgia vascular aventando a hipótese de
Fenômeno de Raynaud ou punção arterial inadvertida”, escreveu um médico.
Especialista e Associação das Vítimas de Erros MédicosSegundo
o médico Marcos Arêas Marques, membro da Sociedade Brasileira de
Angiologia e de Cirurgia Vascular (SBACV), uma “punção arterial
inadvertida” pode causar isquemia (falta de circulação sanguínea) e até
necrose dos membros do paciente, sendo necessária a amputação.
“A punção arterial é qualquer tentativa de pegar a artéria em vez da
veia. Teoricamente é um erro que não deve acontecer”, disse o
angiologista Arêas Marques, que estuda as doenças das veias e artérias.
Segundo o especialista, o Fenômeno de Raynaud é um espasmo involuntário
das artérias das mãos e pode ter origem no próprio organismo humano ou
ser causado por um fator externo, como uma injeção aplicada de forma
errada.
“Esse vaso espasmo exagerado é percebido quando alguém coloca a mão na
água fria e ela fica roxa. As extremidades ficam azuladas. Mas ele pode
ser secundário a um trauma também. Por exemplo, uma punção inadvertida
com medicação na artéria que era para ser feita na veia. A artéria leva
sangue para a extremidade e caso seja aplicado algo nela, pode causar
isquemia, falta de sangue, dor na mão e até a perda do membro”, disse
Arêas Marques.
Ainda de acordo com o angiologista é comum a aplicação de Diazepan em
pacientes antes de endoscopias. “Esse remédio tem o efeito de sedativo
porque deixa a pessoa calma para que o procedimento seja mais
confortável para o paciente. Mas ele tem de ser aplicado na veia e não
na artéria”, afirmou Arêas Marques. “Se injetar remédio endovenoso em
artéria pode ter problema, como a Iatrogenia, que é uma complicação
adversa de um procedimento.”
“No meu entender ocorreu uma série de equívocos, que caracteriza má
prestação de serviço, onde através de uma ação ordinária indenizatória, a
vítima deverá ser ressarcida por danos morais, danos estéticos, pensão
alimentícia pela incapacidade parcial etc. Houve uma grande demora para
que houvesse socorro, 26 horas”, diz Célia Destri, presidente da
Associação das Vítimas de Erros Médicos (Averme).
Da Redação com G1